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Artigo

A memória da fome

Marlene Vaz

01/10/2020 16h00

Foto: Divulgação

O IBGE divulgou em setembro de 2020 os dados sobre Insegurança Alimentar, da Pesquisa de Orçamento Familiar 2017-2018, apontando que cresceu o número de domicílios baianos com algum grau de insegurança alimentar, passando a atingir 04 em cada 10 domicílios (45,3%), 7,4 milhões de pessoas ou metade da população. Esse resultado mostrou que cresceu os casos de insegurança leve, ou seja, domicílios que estavam em segurança entraram no percurso para a fome.

De cada 05 lares baianos faltou comida em 01, correspondendo a 922 mil domicílios e 3 milhões de pessoas. E pode ter havido fome em 310 mil domicílios (6,3%), atingindo 987 mil pessoas.  A Bahia foi o segundo Estado da Federação em situação de Insegurança Alimentar (310 mil domicílios), perdendo apenas para São Paulo (381 mil domicílios).

Em 1974, coordenei no IBGE uma parte da pesquisa Estudo Nacional do Orçamento e da Despesa Familiar -ENDEF - no Brasil, pesquisa da FAO, uma amostra de 55 mil famílias, e também fiz parte do grupo de análise dos dados na Sede do órgão. Os entrevistadores, durante 07 dias, levantavam dados demográficos, a renda, a despesa e pesavam a comida de cada refeição da família. Ao final do dia, voltavam para pesar os resíduos. Chamou minha atenção as características sociológicas das pessoas diante da comida.

As famílias de baixa renda apresentavam no primeiro e segundo dias um cardápio que não as envergonhassem. No terceiro dia, tendo esgotado a renda destinada à alimentação, tentavam desistir, o que requeria muito preparo do entrevistador para continuar. Acredito que hoje também as pessoas pobres que têm uma família e moram em alguma forma de domicilio, sentem vergonha de não ter o que comer. Diferente dos moradores de rua que não conseguiram sustentar esses valores culturais. 

Já as famílias de classe média e de alta renda apresentavam o cardápio autêntico.  Em contrapartida, as famílias de classe média alta tentavam driblar suas despesas, com receio do Imposto de Renda. Porém nossos entrevistadores entregavam impressa a Lei que resguarda o sigilo do IBGE e resolviam o problema.

O preparo dos alimentos poderia divergir entre as famílias, conservando ou perdendo nutrientes, mas o desperdício era comum a todas as classes de renda, onde a maior parte dos alimentos era jogada fora junto com as cascas e descartáveis. E, até hoje, a maioria das famílias mais favorecidas não comem no dia seguinte as sobras do dia anterior, herança de uma burguesia rural. Essa memória cultural de sermos um país com uma significativa extensão de terra, que “onde se planta tudo dá”, por não termos sofrido (felizmente) no nosso território as Duas Grandes Guerras, nos tornou uns desperdiçados.

Basta observar a quantidade de contêineres de resíduos nas portas das casas e dos prédios. Mesmo onde há Coleta Seletiva, as pessoas que podem escolher e comer quantas vezes quiserem, não selecionam o que pode ser reciclado para que muitas famílias matem a fome.

Nessa pesquisa, supervisionando um entrevistador num domicilio de baixa renda, no Município de Candeias, BA, a mãe com um bebê chorando que era pele e osso, segurava uma tigelinha de esmalte com os restos do que fora uma papa de farinha de mandioca com água. Ela passava o dedo e colocava os resíduos na boca do filho. De repete, ela precisou pegar a certidão do filho.  Para ajudar, peguei o bebê nos braços.   Assustada, percebi que ele parou de se mexer. Saí correndo com ela para o Posto de Saúde, bem próximo. Diagnóstico, morreu de inanição.

Por isso os governantes precisam usar o Banco de Dados do IBGE, para prevenção da fome e consolidação de nossa democracia. Porque uma coisa é você teorizar sobre a fome. Outra coisa é ver gente morrendo de fome.

Marlene Vaz- é socióloga