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Entrevista

Acordo Mercosul/UE fica mais complicado sem Amazônia preservada

Para embaixador Rubens Barbosa, política ambiental precisa sofrer correções e o Brasil tem que assumir o protagonismo

14/05/2020 08h02

Os esforços atuais, como não poderia deixar de ser, deveriam estar todos voltados para o combate à pandemia causada pelo coronavírus. Mas, no segundo semestre, na avaliação do embaixador Rubens Barbosa, que representou o Brasil em Londres (1994 a 1999), e em Washington (1999 a 2004), a questão ambiental vai entrar com tudo na discussão internacional. Principalmente, dentro do provável processo de aprovação, por parte dos parlamentos tanto europeus quanto do Mercosul, do acordo que ainda deve ser assinado entre os dois blocos comerciais. Sem mudanças de rotas na política ambiental em curso na Amazônia, por exemplo, os parlamentares dos vários países europeus dificilmente vão ratificar o acordo conforme o embaixador Barbosa afirma nesta entrevista para o Instituto Escolhas.

O também presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e da Associação Brasileira da Indústria do Trigo (Abitrigo) analisa como o agronegócio brasileiro deve se comportar depois da crise atual e, principalmente, como ficará a polarização entre Estados Unidos e China neste novo cenário global. Segundo Barbosa, se as instituições multilaterais sobreviverem, elas devem ganhar uma nova roupagem.

O embaixador Rubens Barbosa fala um pouco mais sobre o mundo que vai emergir pós-pandemia do coronavírus. Para ele, “a ONU terá que se reinventar e o debate ambiental vai emergir com toda a força”.  

Instituto Escolhas – O clima de polarização política que o Brasil está vivendo não atrapalha discussões mais profundas e sobre temas relevantes tanto internos quanto externos?

Embaixador Rubens Barbosa – A polarização no Brasil começou há uns 10 ou 15 anos, na base da ideia do nós contra eles, e continua com uma base ideológica muito forte. Entre os temas que nós vamos discutir, como a questão ambiental e o agronegócio, essa polarização vai continuar. Mas a minha expectativa é que nós temos algumas datas muito importantes pela frente que vão ter que receber um tratamento diferente por parte da sociedade brasileira. Uma delas, concretamente, é assinatura do acordo entre o Mercosul e a União Europeia que deve ocorrer, vamos dizer assim, em meados do ano. Depois dessa assinatura vai começar o processo de ratificação do acordo nos parlamentos europeus. Desde as eleições de outubro de 2019 na Europa, o fiel da balança em vários parlamentos europeus é o partido verde. Vai ser difícil aprovar este acordo dentro da realidade que temos hoje no Brasil em relação ao desmatamento, ao garimpo e a ocupação ilegal de terras.

Escolhas – O acordo comercial então corre riscos?

Rubens Barbosa – Sou moderadamente otimista. O governo vai ter que fazer uma correção de rumo com uma certa rapidez para começar dar respostas aos parlamentos que vão aprovar o acordo. Os interesses são muito grandes e vão estar todos brigando pela aprovação. O governo brasileiro vai ter que fazer gestos, porque eles serão cobrados pela opinião pública global. Certas políticas vão ter que ser corrigidas, como a questão da fiscalização [do desmatamento da floresta]. A questão da mudança do clima, das emissões e dos créditos de carbono vão entrar também na discussão. Elas vão ter que ser melhor executadas.

Escolhas – O senhor falou em datas. Toda a discussão vai coincidir com a campanha presidencial para 2022 aqui no Brasil. Isso é bom ou ruim para a aprovação do acordo no Congresso Nacional?

Rubens Barbosa – O debate sobre o acordo aqui no Brasil, que pouca gente está dando atenção agora, deve começar a partir do fim deste ano. É quando os grupos pressão da sociedade brasileira, – e em uma democracia estes grupos de pressão exercem de forma legítima seu papel para a aprovação de políticas de conduta –, sobretudo os ligados ao Agro, que são muito influentes no Congresso e no Executivo, vão influir. As decisões serão arbitradas e decididas pela sociedade brasileira, dentro do Congresso e do Executivo. Ao meu ver, é uma discussão que entra em 2022. O acordo não vai ser aprovado antes de 2022, ano de eleição presidencial. Os ingredientes deste acordo com a UE vão estar muito presentes no debate eleitoral, o que não é pouca coisa. A questão ambiental estará sobre a mesa de discussão dos candidatos para sucessão em 2022. Vamos ter que tomar partido. Não é só uma questão de ambientalistas e de ONGs. Isso envolve os interesses comerciais brasileiros, a questão da percepção externa sobre o país e envolve os empréstimos, se a gente quiser rever essa questão do Fundo Amazônia com a Noruega e com a Alemanha.

Escolhas – Nessa questão da aprovação do acordo pelos parlamentos europeus, até que ponto a percepção externa que se tem hoje sobre o Brasil vai pesar?

Rubens Barbosa – Quem está acompanhando muito de perto esse tema sabe do grau de deterioração da percepção externa do Brasil. Algo que já ocorreu no passado. Nas décadas de 1960 e 1970, na época do governo militar, nós tivemos o mesmo problema, pelas mesmas razões de hoje: meio ambiente e direitos humanos. Mas a punição é que era diferente. Ela se limitava ao campo político. Havia críticas ao governo e ao Brasil por não estarem cumprindo regras de proteção do meio ambiente e dos direitos humanos. Agora é diferente, mais de 50 anos depois a situação mudou. Primeiro, apareceu um personagem muito importante que não havia antes com a força que ele tem hoje. A preocupação com os consumidores é muito grande e as medidas de defesa do consumidor não são negociadas. Elas não são da OMC e nem estão nos tratados internacionais, mas são feitas informalmente pelo setor privado. Você não tem como evitar. As pessoas só vão comprar um determinado produto se ele tiver um selo ambiental.

Em segundo lugar, a influência da política ambiental sobre as negociações comerciais é algo novo, também não existia antes. Tanto no acordo com a UE quanto com o Canadá, que também estamos concluindo, vai ter um capítulo também sobre a questão do meio ambiente. Daqui para frente, todos os acordos comerciais terão, cada vez mais, regras que estão atreladas ao comércio, mas que não são comerciais. Esses fatores não comerciais vão ter que ser percebidos pelos governos e não só aqui no Brasil. Todos os países em desenvolvimento vão enfrentar esse problema. Se a gente quiser exportar para a Europa ou para a Ásia isso terá que ser levado em conta. Até a China deve caminhar nesta direção. Atualmente, ela está com uma preocupação ambiental que não havia há quatro ou cinco anos. Se ela quiser exercer um papel importante nas organizações internacionais, na minha visão, daqui a dois ou três anos, ela vai passar a defender as mesmas coisas que o mundo hoje está defendendo. Inclusive a importação de produtos que tem a ver com a saúde e com a alimentação.

Escolhas – A Amazônia, ainda em relação ao contexto internacional, também é um ponto importante de atenção?

Rubens Barbosa – Depois que acabar a pandemia, o tema ambiental vai entrar com muita força. A Amazônia vai ser muito importante porque ela é um foco de atenção global. Você pode gostar ou não gostar disso, mas é um fato. O Brasil até um tempo atrás era um dos líderes das negociações internacionais. Nós vamos ter que voltar ao protagonismo que nós perdemos desde o começo do ano passado. Temos que encontrar maneiras de responder a essa percepção muito negativa que existe no exterior hoje a respeito do Brasil. Por causa desta crise de saúde pública que nós estamos vivendo e também devido ao meio ambiente. O fim do coronavírus vai coincidir com o problema das queimadas florestais entre o fim do ano e início do ano que vem. A partir de agosto ou setembro é um problema que vai começar a chamar a atenção de novo das pessoas. O Brasil precisa fiscalizar e proteger a Amazônia e desenvolver programas concretos de contenção destes abusos relacionados ao desmatamento e a exploração ilegal. Aliado a isso, a questão da biodiversidade tem que ser discutida pelos governos e pelas empresas. Como mostra o estudo feito pelo Instituto Escolhas sobre a região (1), a riqueza e a diversidade da Amazônia têm que virar políticas dos governos federal, estadual e municipal para que a piscicultura e a transformação digital gere empregos e renda para a população local.

Em reunião [no último dia 4 de maio] com o Governo Federal, com o vice-presidente Hamilton Mourão, que coordena o Conselho da Amazônia, nós transmitimos a ele duas ideias. A elaboração de um levantamento, por meio do Irice, o instituto que presido, de todos os compromissos internacionais do Brasil que constam do capítulo de desenvolvimento sustentável do acordo entre o Mercosul e a Comunidade Europeia para saber o grau de cumprimento destes compromissos. Temos que ter um documento independente, que não seja oficial, para poder defender os interesses brasileiros quando surgir questionamentos sobre determinado tema. Vamos ter um levantamento correto e completo de todos os compromissos que o Brasil assumiu. A segunda ideia também apresentada é exatamente o trabalho feito pelo Instituto Escolhas sobre a biodiversidade da Amazônia. O estudo apresenta projetos concretos que podem ser desenvolvidos pelo governo.

Escolhas – O senhor falou rapidamente sobre a China. Como será essa rivalidade entre o país asiático e os Estados Unidos neste mundo pós pandemia?

Rubens Barbosa – É a rivalidade do século 21. Essa disputa, esse atrito, veio para ficar. Não é uma luta apenas de prevalência comercial. No século passado, nós tivemos uma rivalidade muito grande entre os Estados Unidos e a União Soviética. Agora vamos ter essa outra, com outras tonalidades. Diferente da Guerra Fria, nós estamos vendo uma rivalidade em função da emergência de uma nova superpotência e a contenção disso por parte da única superpotência global atual, que é os Estados Unidos. Começou na área comercial, transbordou para a área de tecnologia e agora estamos vendo a terceira área de atrito na questão da pandemia. Como isso veio para ficar, vamos ter que acompanhar como as relações internacionais vão caminhar no meio das duas superpotências. Não há mais a ameaça de uma guerra atômica, mas a luta, por parte da China, de ascender a categoria de superpotência. E os Estados Unidos tentando conter isso. O que vai ocorrer internamente nos Estados Unidos, por causa das eleições deste ano, vai influenciar bastante todo o processo. O Trump resolveu tirar os Estados Unidos do protagonismo global, se isolando, mas sem querer abrir espaço para a própria China. Se outro presidente for eleito no lugar do Trump, a relação com o resto do mundo vai ser diferente. Poderá se desenvolver uma atitude de maior cooperação e de fortalecimento dos órgãos multilaterais. A rivalidade com a China, independentemente do presidente que assumir, vai continuar porque a sociedade americana não está preparada para aceitar a emergência da China.

Escolhas – Nós vimos durante a pandemia, o presidente Trump entrando em conflito com a OMS. Estas organizações multilaterais vão sair fortalecidas da crise?

Rubens Barbosa – Não podemos ter uma posição definitiva, mas tudo o que ocorre agora com essas instituições multilaterais é diferente do que ocorreu depois da guerra. Todas estas instituições multilaterais que temos hoje é resultado de uma influência muito grande dos Estados Unidos em Bretton Woods [conferência realizada nos Estados Unidos em 1944 durante a Segunda Guerra que estabeleceu regras comerciais e financeiras entre as principais nações mundiais da época]. As Nações Unidas, o Banco Mundial, o Fundo Monetário e depois as outras instituições regionais, como o BID, saíram por causa da forte liderança americana. Ainda vieram mais tarde a OMC e a OMS. Hoje, é diferente. Nós temos esse sistema montado, mas com um esvaziamento crescente, a partir, inclusive, da posição da potência mais importante do mundo que são os Estados Unidos. Eles esvaziaram a OMC e agora estão esvaziando a OMS. Os Estados Unidos não prestigiam os acordos internacionais, como o Acordo de Paris. Por isso, a depender também do resultado das eleições nos Estados Unidos, pode ser que ocorra uma volta do interesse americano em prestigiar essas organizações multilaterais. Mas elas virão, se isso ocorrer, com uma nova roupagem.

Na minha visão, as organizações multilaterais não vão continuar como elas são hoje. As que ficarem vão apresentar um novo formato. O que ocorreu com a OMC nos últimos anos, que é muito importante para o Brasil inclusive, é que ela perdeu força pela maneira como o processo decisório da instituição se desenvolve. É impossível você ter consenso entre cento e tantos países. Não existe mais isso. Por esse motivo é que as negociações comerciais começaram a ocorrer fora da OMC, provocando o esvaziamento da organização. Além disso, novos temas passaram a ser importantes na negociação multilateral na área de comércio. A política ambiental passou a fazer parte das negociações comerciais mesmo fora da OMC. Essas organizações, se sobreviverem, elas vão evoluir de uma nova maneira. Inclusive com uma participação mais forte da China. Uma das críticas agora do Trump, em relação à OMS, é que havia uma influência muito grande da China. Na minha opinião, que elas vão mudar, isso elas vão, mas é difícil ainda prever como esse processo vai se desenrolar.

Escolhas – Por falar em evolução, no caso específico do agronegócio, os países devem se fechar mais depois da pandemia? Essa será uma nova ordem mundial?

Rubens Barbosa – Em algumas áreas vai haver efetivamente um movimento para resguardar os interesses sociais. A cadeia produtiva global, por exemplo, está muito concentrada na China. Não há dúvida que vai acontecer uma desconcentração. Agora, não acho que vai haver uma dramática desconcentração no movimento de globalização que nós estamos vendo. Em um primeiro momento, podem haver correções aqui e ali e algumas medidas restritivas, além de incentivos à produção local, mas isso não vai continuar indefinidamente.

Na área agrícola, não existe como os países se fecharem porque muitos não produzem. O Japão e a União Europeia vão ter que continuar importando. É difícil o mundo entrar novamente em um ciclo de substituição de importações. Não há recursos. No caso do Brasil, o governo, pelo menos até aqui, tem uma política liberal para a economia, que não caberia uma substituição das importações, a não ser em alguns segmentos específicos, por uma questão de segurança nacional. Na questão de saúde, por exemplo, nas empresas que estão se ajustando para produzir máscaras, respiradores e que precisam das tecnologias mais modernas para produzir esses itens. Não acredito em um movimento destes em toda a economia.

O agronegócio brasileiro é a parte mais tranquila, dentro desta situação pela qual estamos passando. Os serviços, a indústria e o governo estão todos muito afetados, mas a agroindústria criou um espaço próprio e continua a aumentar sua participação. As exportações continuarão a aumentar e a nossa dependência do mercado chinês vai continuar. Alimentação é um bem essencial. Não vejo muita dificuldade para o Brasil não apenas manter a sua posição, mas aumentar o comércio exterior. E, internamente, também. As pessoas vão continuar a comer. Vejo o agronegócio de uma maneira muito positiva nos próximos meses e anos.

Escolhas – As barreiras sanitárias também devem ser maiores a partir de agora?

Rubens Barbosa – Aqui entra novamente a discussão sobre o acordo com a UE. Se a pandemia não atrasar a assinatura do acordo, todos os compromisso assumidos pelo Brasil em termos de meio ambiente, até envolvendo a questão do trabalho escravo, serão incorporados com a Comunidade Europeia, sem falar na questão da precaução, outro critério que a União Europeia usa muito, e que é muito vago, mas pode ser invocado sempre no caso de poder ocorrer algum comprometimento para saúde, para economia ou para o trabalho. Depois do coronavírus, as preocupações fitossanitárias e ambientais vão ressurgir com muita força, o que pode gerar até protecionismo em alguns países contra o Brasil, se ele não estiver cumprindo cabalmente as regras. Por isso é importante, principalmente na questão ambiental, haver alguma correção não apenas na retórica, mas também na política para que nada seja usado contra o Brasil e prejudique a colocação dos nossos produtos no exterior.

Publicada no portal do Instituto Escolhas