Utilizamos cookies de terceiros para fins analíticos e para lhe mostrar publicidade personalizada com base num perfil elaborado a partir dos seus hábitos de navegação. Pode obter mais informação e configurar suas preferências AQUI.

Editorial

Doença mais cruel num País desigual

A evolução da Covid-19 deixou evidente o quanto é injusto o quadro socioeconômico do Brasil

01/07/2020 19h00

A primeira divulgação dos dados da PNAD Covid-19 (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio), edição extraordinária do IBGE destinada a medir os efeitos da pandemia do novo coronavírus sobre a população e o mercado de trabalho, mostrou uma realidade já sabida e demonstrada quando são realizados quaisquer estudos na área da saúde no Brasil: que a base da pirâmide social da população brasileira, constituída essencialmente pelos pretos, pardos, pobres e sem estudo, é sempre a mais vulnerável.

Os resultados mostraram que, além de serem maioria entre os atingidos pelos sintomas da Covid-19, os brasileiros da base piramidal também sentiram de maneira mais forte os impactos econômicos provocados pela pandemia, que provocou o fechamento de lojas e outras unidades comerciais e a suspensão de grande parte das operações industriais. No item referente apenas à saúde, destaca-se o fato de que entre os 4,2 milhões de brasileiros que apresentaram sintomas da doença em maio, 70% deles eram de cor preta ou parda. É bem verdade que essa parcela da população é maioria no país, com 54,8% de representatividade, o que poderia ser usado como argumento para quem queira contestar a premissa inicial, porém é preciso observar também que o volume de pessoas com sintomas de síndrome gripal mostra que a doença realmente a afetou em maior proporção.

A ressaltar a face cruel das disparidades sociais e suas consequências, a pesquisa mostrou que a Covid-19 afetou em maior quantidade os brasileiros com menor grau de instrução. De acordo com os dados oficiais, apenas 12,5% das pessoas que relataram sentir os sintomas têm ensino superior completo ou pós-graduação. Já quase 50% dos atingidos não têm instrução, têm o ensino fundamental incompleto ou o médio incompleto.

Ao lado da questão da saúde entra o aspecto econômico, também em desfavor dos mais pobres, uma vez que na análise dos números do mercado de trabalho a leitura dos números da PNAD Covid-19 deixa claro que questões como a cor e o nível de escolaridade exerceram forte influência sobre os efeitos da pandemia. De acordo com o IBGE, 19 milhões de brasileiros foram afastados do trabalho, dos quais 9,7 milhões ficaram sem remuneração. Entre os trabalhadores brancos, 16,1% foram afastados. Entre os pretos e pardos, o índice de afastamento foi de 20,8%.

Ainda recordando os números da pesquisa, apenas 9% dos pretos e pardos tiveram a oportunidade de trabalhar em home office, enquanto 17,6% dos brasileiros de cor branca puderam aderir a essa iniciativa, uma saída que permitiu a continuidade das operações de muitas empresas. As desigualdades também saltam aos olhos quando os dados são analisados regionalmente: Norte e Nordeste lideram em incidência de trabalhadores afastados, com taxas de 23,3% e 26,6% respectivamente, e de trabalhadores que ficaram sem remuneração (53,2% e 55,3% dos afastados).

Criada especialmente para tentar identificar os efeitos da pandemia sobre o mercado de trabalho e a saúde dos brasileiros, com o objetivo de servir de base para a elaboração de políticas públicas para minimizar os impactos da crise, a PNAD Covid-19 não pode ter seus dados comparados integralmente com os dados apresentados ano a ano pela PNAD Contínua. Isto porque essa última tem metodologia diferente, com coleta de dados durante três meses e em um número maior de domicílios.

Mas, de qualquer forma, o que a pesquisa extraordinária revela não fica distante dos dados oficiais da PNAD Contínua, uma vez que historicamente, o desemprego no Brasil sempre é maior entre pretos e pardos do que entre brancos. E ela serve de base para reforçar a linha de análises sobre o quanto é prejudicial a existência de tantas disparidades sociais e econômicas no universo da população brasileira. O primeiro caso da Covid-19 no país foi em 25 de fevereiro, há quatro meses, portanto, e sua evolução deixou evidente este quadro injusto social e economicamente.

Seria muito bom que essa tragédia servisse, pelo menos, para aumentar o nível de consciência das autoridades e das chamadas elites econômicas quanto ao fato de que as riquezas de nada servem quando são acumuladas apenas num dos lados da balança.

O desequilíbrio pode beneficiar, em muitos momentos, aqueles que estão no lado que fica acima, mas chega o momento em que a única e verdadeira saída, justa e boa para todos, é que as riquezas econômicas de um país possam se traduzir em qualidade de vida para cada um dos seus habitantes.