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Artigo

Goleiro Gilmar, a propósito da tragédia gaúcha

Frederico Bussinger

26/06/2024 06h07

Foto: Ricardo Stuckert - PR

Difícil escolher uma métrica adequada ou encontrar uma única palavra para descrever a tragédia gaúcha dos últimos mêses. Das dores, dos dramas humanos (mais de 150 mortes e cerca de 600 mil desalojados) temos conhecimento pelas centenas; milhares de reportagens, muitas ao vivo e de campo, veiculadas desde o final de abril passado por rádio, TV, mídia impressa e internet. Já com o paulatino baixar das águas vamos, aos poucos, tendo uma visão mais clara dos prejuízos materiais, empresariais, ambientais e urbanos que, com tristeza, mas muito provavelmente, superarão as mais pessimistas estimativas.

Para além das especulações e mútuas acusações, típicas desses tempos de Fla X Flu político (anabolizado pelas eleições municipais que se aproximam), o IDELT promoveu um “6 ½ em debate” dia 15/MAI passado, como o faz sobre temas relevantes há 17 anos: excelente e esclarecedora roda de conversa, horizontal, com participantes bem-informados, de gerações, formações e experiências diversas. Em comum, porém, a busca de entendimento do complexo quadro e, principalmente, o interesse em encontrar caminhos para lidar com tais situações; mesmo porque, infelizmente, essa não é nem exceção nem exclusividade do Rio Grande do Sul.

Uma curiosidade: quando o evento se iniciava, as águas do Guaíba estavam 2,13 m (algo como a altura de uma porta) acima do nível de inundação de Porto Alegre (3,00 m); e 22 cm (um palmo) abaixo do (novo) recorde de 5,35 m (5/MAI/2024, às 5h30)!

Praticamente não foi objeto de discussão no evento o fenômeno de elevação média das temperaturas no Planeta nas últimas décadas; uma evidência. Da mesma forma a existência e aumento de frequência e intensidade dos chamados “eventos extremos” (secas e inundações, em particular; mas também terremotos, furações e vulcões).

Aliás, o quadro gaúcho o exemplifica: ora falta de água (o Estado vinha de 3 anos de secas), ora excesso, como agora:

  • A respeito dessas, Porto Alegre experimentou 12 principais cheias em 150 anos de registros sistemáticos; a maioria delas em anos de El Niño: 1873, 1914, 1928, 1936, 1967, 1984, 2002, 2015, 2016, 2023, 2024; além da histórica de 1941, esta vivida por Mario Quintana há 83 anos atrás, que a expressou nos versos de “Reminescências”.
  • Uma semelhança (e até coincidência): tanto em 2024 como em 1941 o nível do Guaíba ultrapassou a cota de inundação no 29º dia do período de chuvas (que, naquele outono, durou 55 dias). Uma diferença: apesar de que em ambos os casos houve repique, este ano o nível voltou a ficar abaixo de tal cota 29 dias depois de tê-la ultrapassado, enquanto em 1941 já 18 dias depois.
  • Grande diferença: neste ano o nível do Guaíba demorou 6 dias para sair de 1,24 m e estabelecer o novo recorde histórico (5, 35 m); enquanto que em 1941, incidentalmente também no início do mês de maio, foram necessários 10 dias para ele saltar de 1,16 m a “apenas” 4,76 m (o recorde anterior: 59 cm menor que o novo).

Assim, a discussão no “6 ½ em debate” acabou centrada:

  • nas causas (e causas das causas) do aquecimento e dos “eventos extremos”;
  • na extensão e gravidade das inundações gaúchas; e
  • nas posturas, atitudes e ações, ante elas, adotadas pelos diversos atores envolvidos: sociedade e, particularmente, governantes.

Causas; e causas de causas:

Na busca de entender as relações causais, e no espaço de um artigo, os dados, informações, ponderações e posicionamentos dos participantes poderiam ser sistematizados em 4 principais grupos afins (não mutuamente excludentes):

  1. O aquecimento global, que produz mudanças climáticas, que gera “eventos extremos” pontuais, além de recuos glaciais, desertificações, desaparecimento de florestas, degelos de solos permanentemente congelados (“permafrost”), etc, resultam do aumento acelerado da emissão de gases de efeito estufa – GEE: a) particularmente do CO2 e, b) mais intensamente desde a Revolução Industrial (Século XIX).
  2. Além dos GEE, os “eventos extremos” seriam influenciados, tanto pelas atividades solares dos últimos 100 anos, como por ciclos de longo prazo de transformação/evolução do Planeta.
  3. Chuvas (em todo lugar do mundo) têm ciclos anuais; também outros periódicos (com periodicidades variáveis). Cheias, enchentes, inundações sempre existiram, em maior ou menor grau. Se o aquecimento global/mudanças climáticas tem alguma correlação com elas é, “apenas”, no sentido de torná-los mais frequentes.
  4. Se "rotineiro", ou se "agravado", mais importante que as chuvas (seus volumes e concentração), são as condições para seu escoamento/drenagem. E mais, a "imprudência" de ocupação de áreas alagáveis e de encostas (autorizadas ou clandestinas). Ou seja: a ação humana é mais importante no tocante à ocupação e uso do território que das emissões de GEE (reverberando o Cacique Xoclengues e Leonardo da Vinci, protagonistas do artigo anterior).

Muito possivelmente essa síntese também reflita discussões de outros fóruns que se debruçam sobre os chamados “eventos extremos”, em geral.

Rio Grande do Sul -  2024:

Já no caso concreto, pelos dados, informações e análises preliminares, tudo indica que a tragédia gaúcha poderia ter sido de menores proporções se, por um lado, manutenções e operações de sistemas de prevenção/defesa estivessem com planos de manutenção em ordem, se tivessem sido operados adequadamente; e, por outro, se planos/projetos, alguns muito detalhados, outros até com licença ambiental expedida, tivessem sido executados: muito triste; inaceitável!

No tocante a planejamento, p.ex:

  • Em 8/AGO/2012 (12 anos atras), e “em resposta a eventos climáticos como os deslizamentos de terra na região serrana do Rio de Janeiro, que deixaram mais de 900 mortos e milhares de feridos em JAN de 2011”, o Governo Federal concluiu e divulgou o “Plano Nacional de Gestão de Riscos e Resposta a Desastres Naturais” (com espaço destacado para o RS). Este previa investimentos de R$ 18 bilhões para prevenção (obras estruturantes), mapeamento (das áreas de risco), resposta (socorro, assistência e reconstrução), e monitoramento e alerta (estruturação da rede nacional). Cumpria, então, o definido pelo Art. 21; XVIII da CF/88: “Compete à União... planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações”.
  • Em 12/SET/2018 (6 anos atras), a Metroplan apresentou o “Plano Metropolitano de Proteção Contra Cheias” ,  em reunião do Governador do Estado com os Prefeitos da Região Metropolitana de Porto Alegre no Palácio Piratini; segmentado em 4 eixos: convivência com as cheias, ações não estruturais (sem execução de obras), desapropriação das áreas inundadas, e ações estruturais (com execução de obras), para as quais estavam previstos investimentos entre R$ 1,4 e 1,6 bilhão (dependendo das alternativas escolhidas). Em 13/FEV/2019 esse Plano foi apresentado ao Ministério do Desenvolvimento do governo recém empossado. OBS: Esses estudos e projetos, atualizados, são disponibilizados pela Metroplan e detalhados por bacias: Gravataí; Jacui; Sinos; Caí; e Alvorada e Porto Alegre.
  • O Guaíba flui para a Lagoa dos Patos, e essa para o Oceano Atlântico em Rio Grande, a cerca de 300 km de Porto Alegre. A ideia de um canal, mais próximo de Porto Alegre, que permita maior vazão, e que seja menos afetada pelos fortes e frequentes ventos do sul, voltou a ser aventada e discutida. Mas vale lembrar que um estudo para “Ligação de Porto Alegre ao Mar” fora contratado a um consórcio de empresas francesas e a Hidrobrasileira pela CODEL (“Comissão de Desenvolvimento Econômico do Litoral), criada em 4/ABR/1960. Os estudos técnicos e econômicos foram concluídos em 1962: não estão claros os encaminhamentos daí em diante!?!

Esse são só exemplos: certamente muitos outros planos e projetos, nos diferentes níveis de governo, foram elaborados nas últimas décadas. A pergunta, pois, se torna inevitável: quanto deles foi efetivamente implementado? E o foram como projetados? Se tivessem sido, o que e quanto poderia ter sido evitado. Particularmente em relação a Porto Alegre, a inundação teria alcançados as proporções que alcançou?

Sobre este ponto, e já no tocante às infraestruturas e sistemas existentes, algo parece estar ficando claro: se o sistema de 68 km de defesa/proteção de Porto Alegre (apesar de não ser uma unanimidade), tivesse funcionado como previsto, a cidade poderia ter tido um alagamento aqui outro ali (fruto das chuvas locais), mas dificilmente teria sido inundada como foi: a Holanda é benchmarking a respeito!

Mais especificamente, o dramático quadro só ocorreu, conforme do noticiário já é possivel depreender: i) porque sua manutenção não vem sendo feita adequadamente: contato ferro-com-ferro, sem vedação, claro, não é próprio  para conter a água; ii) A capacidade de drenagem foi comprometida porque muitas bombas não entraram em operação e, muitas que entraram, foram paralisadas por falta de geração própria; iii) Apesar de serem projetadas para níveis de água de 6 metros, uma das 14 comportas foi rompida com 4,5 m.

Em síntese: há visões plurais em relação às relações causais. Mas, no tocante às ações preventivas (como desassoreamento), contingentes e mitigadoras, as evidências apontam no sentido de haver, há algum tempo, um déficit de planejamento, execução e governança. De “law enforcement”  (cumprimento de leis, normas e planos) também.

Ou seja, contrariando as lições de Gilmar dos Santos Neves, nosso goleiro nas Copas do Mundo de 1958 e 1962, bolas não tão difíceis, algumas até fáceis parece estarem entrando no gol; lição inspiradora e essencial para o esforço de reconstrução do Rio Grande do Sul que se inicia.

Frederico Bussinger – Engenheiro, economista e consultor. Foi diretor do Metro/SP, Departamento Hidroviário (SP), e da Codesp. Também foi presidente da SPTrans, CPTM, Docas de São Sebastião e da Confea.

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