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Artigo

O futuro da carga conteinerizada no Brasil (*)

Frederico Bussinger

04/07/2025 06h03

Foto: Divulgação

Não se imaginava que, poucas horas depois de concluído o Webinar promovido pela “Associação Nacional dos Usuários do Transporte de Carga -  ANUT” (sob o título adotado para este artigo), a imprensa começasse a noticiar que uma das preocupações nele levantadas era, na verdade, uma profecia; profecia que acabara de ser consumada: a judicialização do pachorrento processo licitatório do Tecon-10 (ex-STS-10) pela Maersk. O juiz federal da 21ª Vara Cível Federal de SP negou o pedido de liminar, mas deu prazo de 10 dias para a ANTAQ fornecer informações sobre os critérios adotados para as condições de participação no certame.

Sem adentrar o mérito ou fazer juízo de valor, a Agência não deverá ter dificuldades para cumprir tal prazo e fornecer as informações solicitadas, visto que nas 21 páginas do Despacho condutor da decisão tomada por seu colegiado é resgatada a (longa) análise e proposições do CADE, de 3 anos atrás (NT nº 10/2022). Esta, por sua vez, ao longo de suas 30 páginas, resenha os antecedentes e aspectos conceituais da complexa matéria; particularmente no mundo portuário. Ademais, o Despacho da ANTAQ, para fundamentar seu posicionamento, informa a existência de inúmeros dados e discorre sobre “cases” vistos como congêneres.

Ou seja; nem a polêmica começou com a decisão da ANTAQ, nem é recente. A propósito, vale também resgatar o “Diálogo Público” promovido pelo TCU há 3 anos, quando o debate sobre verticalização e self-preferencing já estava efervescente: “Análise concorrencial no setor portuário” (26/MAI/2022).

A definição final do modelo que será adotado para o STS-10, assim, é tanto incerta (prazo) como imprevisível (resultado), visto que a decisão da ANTAQ, sob análise do TCU e ora judicializada, também teve o condão de politizar (ainda mais) o processo: trouxe à baila o Governador de SP, parlamentares, entidades e, mais recentemente, a mobilização de embaixadores (Dinamarca, Suíça e Holanda; representando a União Europeia) em interlocução com a Casa Civil.

A Maersk (criada dinamarquesa) explicitou seu interesse com a ação judicial. A JBS (brasileira), Cosco (chinesa), ICTSI (filipina) e Hudson Ports (americana) são apontadas como “players favorecidos com as restrições da ANTAQ” pelo subprocurador-geral do MP junto ao TCU, Lucas Furtado; como informa longa matéria de um dos principais jornais do País (“Ação na Justiça expõe guerra bilionária entre estrangeiros e JBS no Porto de Santos” – OG – 27/JUN/2025). Na verdade, o que o MP fez foi apenas explicitá-los pois, particularmente numa indústria global de US$ 4,3 trilhões/ano (“Logistics Performance Index - LPI” – Banco Mundial), é difícil imaginar não haver interesses envolvidos em cada decisão a ser tomada (comerciais, econômicos, políticos, corporativos, etc). E, principalmente, favorecidos e prejudicados quando há uma definição; não é?

Certamente a decisão que ao final prevalecerá, a realização do leilão, a assinatura do contrato e a possibilidade de implementação do projeto interessa, empresarialmente, a cada um dos players apontados: é curial! No entanto o cenário para “o futuro da carga conteinerizada no Brasil”, questão de grande interesse para o País e para a sociedade, tema do Webinar da ANUT onde foi discutida por mais de 2h30, envolve muitos outros aspectos, estratégias e instrumentos para além do STS-10; que por muitos é tratado como uma “bala-de-prata”.

Outros aspectos há, inclusive porque há movimentos mais profundos na geopolítica e na ordem econômica mundial, com implicações que já se fazem sentir nas rotas de comércio e cadeias de suprimento do Planeta: ao contrário de reducionismo por vezes adotado, lida-se com um sistema de múltiplas equações, incógnitas e variáveis.

“Lessons learned” no Webinar da ANUT

Algumas dessas questões dizem respeito à própria modelagem apresentada na última Audiência Pública do Tecon-10. P.ex: o PNL/2035 propõe ao menos dobrar a participação do modo ferroviário na matriz de transportes brasileira entre 2017-35 (de cerca de 18% para, “pelo menos 30%”.... podendo chegar, no “Cenário-9”, a 43%!). Por outro lado, com a “Ferrovia Interna do Porto de Santos - FIPS” e a modernização da “Ferradura” (obrigação da renovação antecipada da MRS) pretende-se que as articulações ferroviárias do Complexo Portuário Santista deem um salto de cerca de 45 Mt/ano para 115 Mt/ano (nova meta). No entanto, estranhamente, quando se modela o STS-10 não se explicita ser uma “obrigação” da APS (dos concessionários ou, mesmo, do Poder Concedente) prover conexão do terminal à malha ferroviária da Baixada Santista... que passa “do outro lado da rua”.

O futuro arrendatário não teria maior segurança para cumprir as obrigações ferroviárias, dentro do terminal, que o Edital/Contrato exigem, com definições mais claras do com o que ele pode contar exogenamente? O cumprimento das metas do PNL e da FIPS não teriam uma contribuição?

O Webinar da ANUT, todavia, tratou essencialmente de questões mais abrangentes. P.ex, “numa apertada síntese”, jargão dos “operadores do direito”:

Carga conteinerizada e conteinerizável, há. E haveria muito mais (falou-se, até, do dobro em 10 anos!) se os arranjos logísticos brasileiros o viabilizassem. Tal visão foi uma unanimidade entre os painelistas, que também lembraram: i) o Brasil é “apenas” o 17ª país em movimentação de contêineres; ii) a cabotagem e as operações feeder-hub-feeder, apesar da grande expansão nas últimas décadas, ainda estão aquém do necessário/possível; iii) restrições da logística brasileira não são apenas para os contêineres (para os granéis vegetais é também uma ingente realidade); iv) restrições estas não apenas portuárias, mas logísticas; v) não limitada à infraestrutura, mas com impedâncias resultantes de riscos vários, do modelo e prática regulatórios, etc.

Certamente essas impedâncias devem explicar, ao menos em parte, o porquê o peso da logística no PIB brasileiro é 34% maior que a média dos países da OCDE (11,6 X 8,7%), ou 43% em relação ao dos USA; conforme revela estudo do “Movimento Brasil Competitivo - MBC” .

Vale refletir: se ao menos o Brasil estivesse no patamar médio OCDE poderia estar economizando cerca de U$ 65 bi/ano com logística, dado ser seu PIB pouco maior que US$ 2 tri: convertendo-se, mais de R$ 300 bi/ano; montante anual equivalente aos investimentos previstos pelo “Novo PAC” (2023-26 e pós-26) para o “Eixo transporte eficiente e sustentável”: R$ 316,2 bi. Dito de outra forma: quantitativamente, nossa “gordura logística” (em relação à média da OCDE) é equivalente a um “Novo PAC” por ano! Muito, não?

O Brasil vive um paradoxo, na didática visão do representante dos armadores, mercê de uma nova realidade da indústria naval: 70% dos navios da atual carteira de encomendas são maiores que o dobro do porte dos maiores operáveis nos portos brasileiros hoje (24.000 X 11.500 TEUs; 400 X 366 m de LOA) – navios que custam entre US$ 200-250 milhões. Ou seja, conclui ele: o crescimento da demanda de contêineres no País “não pode ser atendido por meio de aumento do número de navios porque faltam berços; e não pode ser atendido com navios maiores porque esses não entram nos portos brasileiros” (calado, principalmente). Metaforicamente, “é como um adolescente que cresceu usando as mesmas roupas: ficaram curtas e apertadas!”

Agrave-se este quadro a taxação de emissões de GEE para navios de grande porte, a partir de 2027, decisão tomada pela IMO (ABR/2025): inicialmente US$ 100,00/t; progressivamente chegando a US$ 300,00/t.

 

Em síntese, o desafio hoje à nossa frente não é apenas o aumento de capacidade portuária, mas também a qualificação/requalificação dos terminais para a transição energética; sob pena do Brasil ter que operar navios menores, mais antigos e mais poluentes: por conseguinte, operações menos eficientes e, muito provavelmente, mais caras.

Sim; os portos brasileiros têm batido sucessivos recordes; Santos à frente. Mas foi lembrado que esses recordes vêm sendo batidos a um custo altíssimo para os donos da carga. Particularmente em termos de demurrage; estimados em R$ 76 milhões só para as exportações de café em 2024 (CECAFÉ).

Ou seja, (só) investimento como métrica, tão usado em discursos, narrativas e peças oficiais, mostra-se insuficiente como indicador de “sucesso” da evolução logística e de comércio exterior brasileira. Mesmo se considerados apenas investimentos, a depreciação ou “destruição de ativos” (como a evolução do quadro de Itajaí nos últimos anos pode ser vista) não deveria ser considerado como investimento negativo (desinvestimento)? Ademais, como indica o LPI do Banco Mundial, a avaliação da logística envolve pelo menos meia dúzia de dimensões; de variáveis principais.

Há saída?

Do noticiário, dos debates (que ganham holofotes) e das próprias iniciativas governamentais a impressão que se tem é que a tal “restrição de capacidade de contêineres” se restringe a Santos. Mais, especificamente, ao seu Porto Organizado. Daí porque a solução posta, e que concentra todas as atenções e energias, é o STS-10. No Webinar ficou claro que, mesmo em se tratando de Santos, há iniciativas que o extrapolam; algumas já em curso, outras previstas: são expansões ou projetos greenfield no chamado Complexo Portuário (área quase o dobro da abrangida pela Poligonal do Porto Organizado).

Alargando mais o campo de análise, no próprio Estado de SP há o (adormecido) Porto de São Sebastião:

  1. o calado que se clama para Santos lá está (conhecido e reconhecido unanimemente): uma profundidade, natural, de 25 metros; no qual já circularam, sem incidentes, navios (para o terminal da Petrobras/BR) de até 400.000t (mais do dobro dos maiores conteneiros em construção!);
  2. o acesso que se estuda para desafogar os congestionamentos da Baixada Santista, lá está... e pronto: aliás, a Nova Tamoios foi concebida na perspectiva de expansão do Porto (lembrando que, em um hub-port, apenas uma parcela dos contêineres movimentados sai e entre do terminal – neste caso, subiria/desceria a Serra. Dito de outra forma: o acesso rodoviário ao PSS, já existente, pode ser mais que suficiente para atender à demanda projetada);
  3. as metas de sustentabilidade (e ESG), que hoje pautam quase todos os debates e decisões, podem ter grande contribuição com uma alternativa logística que acessa o Vale do Paraíba e todo o interior do Estado sem sacrificar o já carregado/congestionado viário da Região Metropolitana de SP: menos trânsito, menos acidentes, menos emissões.

Alargando-o um pouco mais, para além de SP, em Itajaí há um ativo que, por analogia a outros terminais, valeria algo como R$ 3 a 4 bilhões. Este terminal, que já movimentou mais de 850.000 TEUs/ano, chegou a ficar longo período inativo (isso mesmo: sem movimentação!): hoje movimenta, “apenas”, cerca de 12-15% daquele volume. Há, ainda, um novo terminal em Suape-PE, as expansões de Paranaguá-PR, projetos em gestação no ES e RS, e um segundo Tecon proposto para Salvador.

É compreensível que, para um potencial investidor em terminal de contêineres, ter um mercado consolidado, em princípio, é preferível a se ter que desenvolvê-lo. É claro que implantar-se um terminal com infraestrutura básica disponível tem seus atrativos sobre um projeto greenfield. Mas, considerando-se o modelo portuário brasileiro vigente e o contexto atual, será que a resposta aos desafios hoje postos não está numa abordagem conjunta, articulada, de autorizações de TUPs e leilões de arrendamentos?

Minimamente no Complexo Portuário Santista?

Será que, no caso dos arrendamentos, ao invés de se oferecer ao mercado apenas o STS-10, uma estratégia de colocá-lo em leilão, junto com terminais conteneiros de outros portos, não contribuiria para a acomodação de (legítimos) interesses dos potenciais operadores/investidores interessados? Não seria um subsídio, relevante, ao Governo Federal para solução do imbróglio político, crescente, agora também internacionalizado?

No caso específico do STS-10 e PSS, considerando-se que a verticalização é uma tendência mundial, aparentemente sem volta, a implementação de uma verdadeira concorrência (concorrência logística!) não seria mais eficaz que contorcionismos regulatórios?

Enfim, o debate sobre o futuro de contêineres no Brasil deveria ir muito além das condições de participação no leilão do STS-10. Mesmo da sua modelagem. A pauta relevante abrange questões que guardam pouca relação com quem será o futuro arrendatário do terminal (para quem, é claro, as regras de participação são condicionantes relevantes). Ela envolve aspectos de políticas públicas (portuárias e logísticas) pouco discutidos, não meridianamente definidos e/ou divulgados, e nem sempre adotados/praticados. Com isso, muitas vezes o estabelecimento de objetivos, estratégias, instrumentos e resultados monitoráveis acabam sendo comprometidos.

Ante tantas indefinições e conflitos de interesses, explícitos e ainda reservado a possíveis “agendas ocultas”, importante ter sido lembrado no Webinar a impressionante transformação (revolução?) implementada nos terminais de contêineres brasileiros nas últimas 3 décadas, a partir do ciclo de reformas portuárias dos anos-90: capacidade e produtividade expressivamente maiores, custos e preços portuários significativamente menores (preços de frete, e seus conexos, tão ou mais importantes para a logística quanto os custos e preços portuários, é um capítulo à parte!).

Tais transformações, foi lembrado, viabilizaram o crescimento médio de movimentação de 7% a.a (como demandava a tal da globalização em voga). Crescimento notável: entre 2-3 vezes o médio do PIB (2,5% a.a) no período!

Importante porque essas experiências, na prática um auto-benchmarking, podem nos dar um alento e ajudar a apontar caminhos: se o fizemos, em passado tão recente, por que não podemos fazê-lo para enfrentar os desafios do momento e do futuro próximo?

“Yes, we can”!

(*) Webinar promovido pela ANUT (https://www.youtube.com/watch?v=Rzg-K4MQsto)

Frederico Bussinger – Engenheiro, economista e consultor. Foi diretor do Metro/SP, Departamento Hidroviário (SP), e da Codesp. Também foi presidente da SPTrans, CPTM, Docas de São Sebastião e da Confea.

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