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Entrevista

“Queremos ser uma autotech sustentável”, diz Antonio Filosa

A proposta é ser uma companhia capaz de desenvolver tecnologias, conhecimentos e soluções para a indústria automotiva

30/05/2022 19h00

Foto: Divulgação 

Eletrificação, carros conectados e direção autônoma: esses são os três principais desafios globais da Stellantis. “Os três pontos são fundamentais para que a empresa se transforme em um líder mundial de mobilidade sustentável”, diz Antonio Filosa, presidente da Stellantis para a América do Sul, em entrevista exclusiva a Época NEGÓCIOS.

Líder absoluta de vendas no Brasil, por conta do desempenho de marcas como Fiat e Jeep, a Stellantis fechou o primeiro trimestre de 2022 com receita líquida global de 41,5 bilhões de euros – um aumento de 12% em comparação ao mesmo período do ano anterior. O resultado tem mais a ver com a conversão cambial do que com vendas, já que estas caíram 12% no mesmo período. Na América do Sul, a queda foi de 8%, devido à escassez de semicondutores que limitaram a capacidade de produção.

Nada disso afetou a posição da empresa como quarto maior grupo de automóveis do mundo - resultado da fusão entre a Fiat Chrysler Automobiles (FCA) e a Peugeot S.A. (PSA), realizada em janeiro de 2021.

“A Stellantis é uma das poucas fusões que nascem a partir de duas empresas com resultados financeiros positivos”, diz “Nenhuma das duas precisava ser resgatada. Ainda assim, sentiram a urgência de se juntar para poder disponibilizar maiores massas de investimentos e fazer frente às grandes mudanças que estavam acontecendo no setor.”

Confira aqui alguns dos principais trechos da entrevista.

Em 2021 você deu uma entrevista mostrando um certo otimismo em relação a 2022, apesar da inflação e da escassez de semicondutores. Como vê a situação agora?

Bom, ninguém imaginava que teríamos uma guerra como a da Ucrânia, ou que haveria uma nova onda de covid-19 na China. Isso gerou uma volatilidade ainda maior à economia global. Mesmo assim, não abandonamos o otimismo. Estamos em contato diariamente com os nossos fornecedores e sabemos os investimentos que estão fazendo em capacidade adicional e técnicas alternativas, para garantir os níveis de produção. Mas esses dois acontecimentos com certeza atrasaram um pouco a volta aos níveis de venda pré-pandemia. Na minha visão, a economia global está passando para uma fase de reestruturação fundamental e seguramente terá horizontes e perspectivas melhores para o futuro próximo. Eu tenho certeza disso.

Quais os principais impactos da guerra sobre a indústria automotiva?

Do ponto de vista macroeconômico, o efeito principal é a inflação. Você pode operar na Antártica, no Japão, na Europa ou no Brasil, a inflação chega de forma igual para todos: a gasolina custa mais, o gás custa mais. Assim como todas as commodities principais, desde aquelas ligadas ao agronegócio quando as minerais - todos os derivados do minério de ferro, lítio, cobre, platina. Todos se inflacionam. E há, claro, distúrbios na cadeia de logística, que também têm um efeito inflacionário, porque o transporte logístico via navio ou avião vai custar mais caro, com algumas rotas sendo canceladas ou redesenhadas.

Uma das motivações da fusão entre a FCA e a PSA, em janeiro de 2021, foi unir forças para lidar com as transformações que estavam acontecendo na indústria automotiva. Como isso se realizou na prática?

A Stellantis se propôs a enfrentar aqueles que considerávamos os três maiores desafios da indústria: a demanda por veículos eletrificados, a transição para o carro conectado e a conquista da direção autônoma. As novas regulamentações que tratam de emissões de CO2 em diversos países estão acelerando um movimento em direção a uma menor poluição e maior consciência ambiental. Nesse sentido, passar da combustão fóssil para a eletrificação se tornou urgente – seja por meio de soluções incrementais e híbridas, seja por meio do veículo puramente elétrico.

A demanda do mercado impõe também o crescimento da digitalização, fazendo com que o automóvel se transforme em uma extensão do ser humano, assim como aconteceu com o smartphone. E, por fim, existe uma terceira vertente da transição tecnológica: a direção autônoma, que está sendo processada em diferentes níveis, levando sempre em conta a segurança veicular. Acredito que fizemos grandes avanços nas três áreas.

Quem não tiver essa visão de futuro dentro da indústria automotiva tende a ser atropelado pelas mudanças?

Com certeza. A visão de futuro sempre esteve presente nas estratégias das maiores empresas, e não poderia ser diferente. O desenvolvimento de um novo veículo, por exemplo, é realizado pensando nos próximos dez anos. As ideias, os sketches, o projeto de engenharia e a industrialização levam um tempo de desenvolvimento que não é inferior a dois anos. E o que você materializa depois deve ficar cinco, seis, sete anos no mercado.

O que acontece agora é que o futuro que estamos planejando hoje é muito mais desafiador do que o futuro que se enxergava dez anos atrás. E isso porque existe essa convergência de vetores de mudança gerando uma nova dinâmica. Veja bem, tirando o mercado da China, os players do mercado automobilístico no mundo ocidental sempre foram os mesmos. Mas agora vemos marcas como Testa e Nivian chegando com muita força, justamente porque as transformações assim o permitem. Então, o desafio que há hoje para construir o futuro da indústria é muito maior do que o que havia na década passada.

O CEO global da empresa, Carlos Tavares, já disse que vocês querem deixar de ser uma empresa automotiva para se transformar em uma líder tecnológica de mobilidade sustentável. Quais são os pontos cruciais dessa mudança?

Veja, nós queremos virar uma autotech company, uma empresa de tecnologia claramente fundamentada no mercado dos carros, mas que possa se definir tech, porque desenvolve tecnologias, conhecimentos e soluções para a indústria automotiva. E a sustentabilidade está no core de todos os nossos processos. O nosso planejamento estratégico, Dare Forward 2030, estabelece um compromisso com os nossos acionistas: seremos uma empresa carbono neutro até 2038. Essa é a meta de descarbonização mais ambiciosa da indústria automobilística. Já temos muitas ações em curso para chegar lá, mas pretendemos identificar outras estratégias para ajudar a cumprir essa meta a tempo.

A eletrificação está no centro dessa estratégia, certo? Em que patamar está essa eletrificação, especialmente no Brasil?

No mundo, nós anunciamos investimentos de algumas dezenas de bilhões de euros dedicados a isso. No Brasil, o foco está mais em mobilidade sustentável do que propriamente na eletrificação. Veja bem, o país tem uma grande oportunidade, que é o etanol, uma opção que gera ainda menos emissões do que o carro elétrico. Durante o plantio da cana de açúcar, é retirado CO2 da atmosfera. Depois, à medida em que a cana de açúcar é coletada, transportada e refinada, isso gera emissões, claro. Mas estas são compensadas pelo CO2 captado no plantio. Então, o resultado é praticamente zero. No carro elétrico, tudo que é ligado à produção do lítio, da mineração à transformação, traz muitas emissões. Então, o carro movido a etanol tem uma eficiência de descarbonização maior. Além disso, o combustível é barato e está disponível em todos os postos de gasolina – não são necessários postos de carregamento.

Por conta disso, temos um plano diferenciado para o Brasil. Vamos continuar com o etanol por algum tempo. E daí pretendemos desenvolver motores híbridos a etanol com diferentes níveis de assistência elétrica, até chegar ao veículo totalmente elétrico. Será uma transição lenta, alavancada sobre o etanol. Estamos trabalhando com o prazo de 2024 ou 2025 para os híbridos. E daí o Brasil terá a chance de beber em diversas fontes, coisas que países como a China ou europeus não têm condição de fazer.

Existe uma dificuldade para quem quer adquirir um carro elétrico no Brasil, que é a questão da escassez de postos de carregamento. Como contornar isso?

Existem três possibilidades de carregamento: pública, privada ou semipública. Nós propomos, a princípio, a privada. Junto com os nossos carros, vendemos uma Charge Station doméstica. Estamos em negociações com empresas como o Carrefour para a instalação de uma estrutura semipública. E, claro, estamos falando com o governo para tentar conseguir uma rede pública mais robusta.

A Stellantis tem feito parcerias com diversas empresas de tecnologia, como a Waymo, do Google, a Amazon, a Qualcomm e a Foxcomm. São esses acordos que vão acelerar a conectividade dos automóveis?

Com certeza. Nós sabemos que muitas das competências que precisamos para fazer isso não estão no nosso DNA. Então, precisamos nos unir a players de tecnologia de nível mundial, como Google e Meta. Tudo que é direcionado a desenvolvimento de software, tecnologias e de novas competências será feito dessa forma, com parcerias estruturais, ou então com investimento próprio, por meio da geração de novos centros de pesquisa.

Outra parceria importante foi com a TIM e a Accenture, para trabalhar com 5G.

O 5G é muito importante para a direção autônoma, especialmente no nível 5, o mais avançado. Mas o 5G é importante para outras coisas – nos processos de produção, aumenta a eficiência das fábricas, por exemplo. Por isso, fizemos essa parceria. Queremos instalar no Polo Automotivo de Goiana, em Pernambuco, a primeira planta industrial integrada com base na tecnologia 5G do planeta. Isso nos fará pioneiros dentro da indústria automotiva.

O terceiro desafio citado por você é a direção autônoma. Em quanto tempo acha que poderemos realmente dispensar os motoristas nos veículos da marca?

Veja bem, há cinco diferentes níveis de direção autônoma, e ninguém chegou ainda no 5, que é o mais avançado. Mas nós fomos um dos primeiros a ter uma direção autônoma nível 1, em um Jeep Compass feito na fábrica de Pernambuco. Ele dá alertas e até freia quando você está muito perto de um obstáculo. E temos carros de níveis 2 e 3, nos quais o carro já muda de faixa e até ultrapassa o que está na frente. Certamente chegaremos ao nível 5. Nós acreditamos que existem várias aplicações para essa tecnologia, que será uma das demandas do futuro.

A Stellantis é campeã de vendas no Brasil. Mas as marcas francesas Peugeot e Citroën ainda têm uma baixa penetração no mercado. Como pretende mudar isso?

Eu acho que as duas marcas merecem ganhar mais marketshare no país, pela qualidade dos produtos, das equipes e dos nossos parceiros concessionários. Mas é impossível passar do 0 aos 100%. Nós começamos com 0,7% de market share. Em 2021, dobramos esse número e acreditamos que dobraremos de novo neste ano. Então, acredito que estamos no caminho certo.

O que falta para que o país se torne um player competitivo no mercado global?

O Brasil poderia se tornar um dos maiores exportadores do mundo, como é hoje a Coreia do Sul. Se levarmos em consideração o que acontece dentro das fábricas, não vejo por que isso não poderia acontecer. Os brasileiros são até mais proativos que os colegas deles em outros países. Então, a falta de competitividade não está relacionada aos processos, e sim à infraestrutura. Há três coisas que precisam mudar para que o país possa exportar mais: a alta carga tributária, a logística precária – tanto a física, com portos, aeroportos e estradas, quanto a de dados – e a falta de isonomia territorial. Em geral, fazer carro no Brasil é menos competitivo que fazer no México ou na Coreia do Sul. Mas, dentro do país, São Paulo é mais competitivo do que os estados do Nordeste, Norte e Centro-Oeste. Precisamos estimular a descentralização para favorecer a transformação econômica do país – e também a transformação social.

Publicado na Época NEGÓCIOS