13/07/2020 11h34
Foto: Marcelo Camargo
Publicado há 30 anos, o Estatuto da Criança e do Adolescente trouxe avanços na abordagem dos direitos essenciais do público para o qual foi criado em diversas áreas, como saúde, educação e também no combate ao trabalho infantil. No entanto, a situação no país está longe de ser a ideal em alguns aspectos como o racismo, a violência doméstica e o abuso sexual. Para o coordenador do Programa de Cidadania dos Adolescentes do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), Mario Volpi, o maior dos desafios para fazer valer esses direitos no Brasil é a desigualdade, e, entre as diversas formas em que ela se apresenta no país, destaca-se o racismo.
"Esse elemento do racismo, da desigualdade racial, é um elemento que o país ainda não superou. E um dos motivos é porque o Brasil é um país que demorou a admitir que existe discriminação racial. Tivemos uma ideologia de uma pseudodemocracia racial, quando todo os conteúdos escolares e referências de acesso a políticas públicas são brancos."
O Unicef apresenta diversos dados que corroboram essa avaliação: 64,1% das crianças e adolescentes em trabalho infantil em 2016 eram negros, assim como 82,9% das vítimas de homicídios entre 10 e 19 anos e 75% das meninas que engravidam entre 10 e 14 anos. "Uma criança negra tem três vezes mais possibilidades de abandonar a escola que crianças não negras", acrescenta Volpi.
Ao contrário da maioria dos indicadores, a taxa de homicídios de adolescentes teve uma alta preocupante nos 30 anos do ECA. O número de adolescentes assassinados mais que dobrou no país entre 1990 e 2017, ano em que 32 brasileiros de 10 a 19 anos foram mortos por dia. Somente entre 1996 e 2017, o número de vítimas chega a 191 mil, estima o Unicef.
Vulnerabilidade
A letalidade infantojuvenil é considerada pela Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente um dos problemas mais urgentes. O secretário nacional, Maurício Cunha, conta que a situação vem sendo discutida entre governo e Unicef, e uma das frentes de atuação será a redução da evasão escolar. "Está provado que reduzir a evasão escolar diminui a letalidade juvenil", disse o secretário, que aponta ações de busca ativa de adolescentes fora da escola como uma das estratégias.
Cunha destaca que as desigualdades são um elemento que precisa ser observado para além dos indicadores gerais, mas alerta que há problemas que afetam todas as classes sociais, como a violência doméstica, os abusos sexuais dentro e fora da internet e o cyberbullying.
"Independentemente da classe social, ser criança no Brasil é estar em situação de vulnerabilidade. Há uma série de violações que independem da classe social, embora sejam muito maiores na condição da pobreza", diz ele, que destaca a internet como um desses desafios e cita a exploração sexual no meio virtual. "O Brasil, infelizmente, não é só consumidor dessas imagens, é um exportador."
Pandemia e violência
Esse conjunto de preocupações se acirrou com a chegada da pandemia de Covid-19. Entre os dados mais alarmantes, sublinha Cunha, está a queda nos registros de violência contra crianças e adolescentes no Disque 100, que recebe denúncias de violações aos direitos humanos.
"Os registros de violência contra crianças caíram 18% em março em relação ao mesmo mês do ano anterior. Como a gente sabe que 90% das violências contra a criança acontecem no ambiente doméstico, o que está acontecendo é uma grande subnotificação. Os atores sociais que fazem a denúncia não estão fazendo, porque são justamente os professores, educadores e profissionais de saúde. É gravíssima a situação", afirma ele, que acredita que as crianças serão as maiores vítimas indiretas da pandemia no médio e longo prazo. "A criança está sofrendo sozinha em casa. O abusador está lá, e ela não tem a quem recorrer."
A secretaria fez campanhas publicitárias estimulando a denúncia de abusos contra a criança e o adolescente e planeja distribuir um material para alertar escolas sobre o acolhimento das crianças no pós-pandemia. "Que a preocupação seja mais de acolhimento, de escuta e criar um ambiente de confiança do que de recuperar conteúdo perdido", diz Cunha.
Maioridade penal e encarceramento
Diretora do Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância (CIESPI) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Irene Rizzini participou das discussões que geraram o Artigo 227 da Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente. Apesar dos avanços conquistados, a socióloga pondera que nenhuma lei é capaz de corrigir problemas sociais crônicos. "Não é o estatuto que vai corrigir a desigualdade social. Mas ele é uma lei que, com as várias que vieram depois e com as políticas públicas criadas a partir do seu referencial, proporcionou uma mudança positiva em inúmeros aspectos."
A pesquisadora considera como ameaças a essa população iniciativas como reduzir a maioridade penal e aumentar o encarceramento de crianças e adolescentes. "É extremamente grave que se reduza o problema a encarcerar adolescentes. No Brasil, os adolescentes e jovens são as principais vítimas de homicídios."
A socióloga alerta que haverá retrocessos se as crianças e adolescentes não ocuparem uma posição de prioridade no orçamento público. Irene Rizzini afirma que cortes em áreas como a saúde, a educação e a assistência podem reverter ganhos em indicadores como mortalidade infantil, analfabetismo e desnutrição.
Ela também defende o fortalecimento de espaços para participação da sociedade civil, como o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que teve a composição reduzida de 56 para 36 membros por decreto presidencial no ano passado, mudança suspensa pelo Supremo Tribunal Federal. Em nota divulgada na época, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos explicou que a medida visava a reduzir gastos com passagens e diárias dos conselheiros.
Diante de desafios históricos, como a desigualdade, e contemporâneos, como questões ligadas à internet, Irene acredita que as premissas do ECA continuam a apontar o caminho a seguir. "A criança e o adolescentes são sujeitos de direito e têm proteção integral. Essa semente não tem volta. Essa semente fica."
Trabalho infantil
A abordagem do Estado contra o trabalho infantil foi uma das transformações que o ECA produziu, conta a coordenadora nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente do Ministério Público do Trabalho (MPT), Ana Maria Real, que destaca uma inversão de valores que era e ainda se faz presente na forma de muitas pessoas verem essa questão.
"É a criança que tem que trabalhar ou é o Estado que tem que suprir as necessidades daquela família vulnerável? A criança é colocada naquela situação porque há uma necessidade econômica", questiona ela, que vê relação entre a forma que se deu o fim da escravidão e a naturalização do trabalho de crianças pobres: "Não houve nenhuma política pública e ficou uma massa de crianças negras nas ruas, oferecendo sua força de trabalho e como pedintes, para tentar sobreviver."
Ana Maria Real avalia que, antes do ECA e da Constituição de 1988, a visão da sociedade e a resposta do Estado ao trabalho infantil eram permeadas por preconceitos: "A criança em situação de trabalho infantil era vista como um menor abandonado e um potencial delinquente e rompedor da ordem social. Havia uma criminalização", conta ela. "O ECA trouxe uma mudança paradigmática da criança como sujeito com direito ao lazer, à escola, à família."
O combate ao trabalho infantil que se deu, desde então, reduziu o número de crianças e adolescentes nessa situação em 68% entre os anos de 1992 e 2015. Foram 5,7 milhões de crianças e adolescentes que deixaram de trabalhar no período. No entanto, 2,4 milhões continuam nesta situação, sendo 80% adolescentes, segundo a procuradora.
Legislação
A mudança de perspectiva sobre o trabalho dos adolescentes, acrescenta ela, também contribuiu para que leis criassem formas menos precárias de trabalho para essa população, como a Lei de Aprendizagem, de 2000. A lei elevou a idade mínima para aprendizagem de 12 para 14 anos e determinou que os adolescentes recebam "formação técnico-profissional metódica compatível com o seu desenvolvimento físico, moral e psicológico".
"A aprendizagem veio como fruto do Estatuto da Criança e do Adolescente. Ela deixou de ser preparo para um ofício específico e passou a ser preparação do adolescente para o mundo do trabalho, aliando educação e emprego"conta Ana Maria.
Apesar dos avanços, ela pondera que é comum ouvir chavões que indicam que o pensamento sobre o trabalho infantil não foi completamente modificado na sociedade brasileira. "'É melhor trabalhar do que roubar'. 'Trabalhar não mata ninguém'. 'Trabalhar dignifica'. Esses chavões estão muito arraigados e refletem o pensamento da sociedade, que não dá o valor devido à criança e ao adolescente", diz a procuradora. "A criança e o adolescente ainda são vistos de alguma forma como objetos."
Fonte: Agência Brasil