05/05/2025 10h05
Foto: Divulgação
O economista José Roberto Afonso, um dos pais da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), ressalta que o processo de construção da regra foi "o mais democrático possível", e, para ele, apesar da deterioração das contas públicas desde 2014, quando o governo passou a poder entregar rombo nas contas públicas, ele avalia que não houve retrocesso e ainda elogia a transparência, que é maior do que em vários países.
"Não vi retrocessos, mas, sim, desinteresse em completar a adoção das regras fiscais: não se criou limite para dívidas federais, nem a sua reavaliação; não se criou conselho para regular gestão fiscal e premiar gestões bem sucedidas: e a principal lacuna, não se aprovou outra lei complementar para reger contas públicas, no lugar da vigente desde 1964", afirma o professor do IDP e da Universidade de Lisboa.
Em meio ao crescimento dos valores destinados às emendas parlamentares, que somam mais de R$ 50 bilhões, neste ano, comprometendo a gestão orçamentária pelo Executivo, Afonso avalia que essas emendas "têm um aspecto positivo: asseguram e elevam o investimento público". Segundo ele, "é preciso tornar mais eficiente esse processo, como ao criar um banco de projeto e ter maior interação entre os Poderes, para se privilegiar projetos mais necessários ao desenvolvimento".
Ao comentar sobre a tendência de aumento da dívida pública bruta em relação ao Produto Interno Bruto (PIB), Afonso minimiza o risco de calote do Tesouro Nacional, uma vez que afirma confiar que "o Brasil encontrará um bom mix de política econômica, que controle a dívida, de forma harmônica com demais variáveis econômicas". Ao mesmo tempo, minimiza os temores do mercado sobre as bombas fiscais. "Aliás, há décadas que sempre se diz que uma bomba fiscal explodirá e nunca tivemos moratória interna, salvo no Plano Collor."
A seguir, a íntegra da entrevista do acadêmico ao Correio Braziliense:
A LRF completa 25 anos. Como foi o processo de construção da lei e qual o seu balanço ao longo desse período?
O processo foi o mais democrático possível, a começar por consulta pública, por acolher sugestões de outros governos e sociedade antes do evento ao Congresso, que ampliou proposta e aprovou com quórum de emenda constitucional, e depois o Supremo Tribunal Federal (STF) sacramentou. Em 25 anos, a lei atingiu sua maioridade e marcou uma mudança cultural no país, na forma como se trata e se encara as coisas e contas públicas.
O senhor acha que houve mais retrocessos do que avanços nesses 25 anos?
Mais avanços, certamente. Não vi retrocessos, mas, sim, desinteresse em completar a adoção das regras fiscais: não se criou limite para dívidas federais, nem a sua reavaliação; não se criou conselho para regular gestão fiscal e premiar gestões bem sucedidas: e a principal lacuna, não se aprovou outra lei complementar para reger contas públicas, no lugar da vigente desde 1964.
Qual sua avaliação do arcabouço fiscal? A regra melhorou ou piorou a LRF? É correto achar que a regra está sendo cumprida com tanto desconto de gastos?
A lei de 2023 (do arcabouço) só se aplica à União e é focada na dívida pública. Tem um alcance menor do que a LRF, aplicado a todos os governos e dita regras também receitas, gastos, patrimônio... As metas da LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias), ditadas pela LRF, me parece que estão sendo cumpridas.
Um dos maiores entraves das contas públicas tem sido o forte aumento de emendas parlamentares, que superam R$ 50 bilhões, neste ano. Mas tudo indica que o governo não vai conseguir reduzir essa fatura. Como o governo vai conseguir cumprir as metas fiscais previstas no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO)?
É paradoxal, mas as emendas têm um aspecto positivo: asseguram e elevam o investimento público. Esta era a conta em que, antes, sempre se jogava todo o peso do ajuste fiscal, menos inteligente. O que se precisa é tornar mais eficiente esse processo, como ao criar um banco de projeto e ter maior interação entre os Poderes, para se privilegiar projetos mais necessários ao desenvolvimento.
O que o senhor acha do projeto de lei de isenção do Imposto de Renda para quem ganha mais de R$ 5 mil e ainda com medidas compensatórias incertas enviado ao Congresso? Pode estimar o impacto da medida nas contas públicas dos governos federal e regionais?
A LRF exige que mensuração dos efeitos e respectiva compensação sejam apresentados junto com a proposta que cria uma renúncia. Confio que o Executivo tenha feito, ou o Legislativo deveria devolver o projeto.
Analistas apontam várias bombas fiscais sendo armadas pelo Congresso e pelo próprio governo neste ano e nos próximos. Como o senhor avalia isso e qual será o impacto nas contas públicas. Vamos continuar vendo o governo entregar deficit até o fim desta década?
A LRF exige que a LDO, dentre outros relatos, seja acompanhada de um mapa de riscos fiscais. O Brasil é muito transparente e competente nessa matéria, muito mais que outros países. Isso permite ter um quadro dos potenciais impactos e seu respectivo debate. Aliás, há décadas que sempre se diz que uma bomba fiscal explodirá e nunca tivemos moratória interna, salvo no Plano Collor.
Ao olhar para a dívida pública bruta, que está perto de 80% do PIB pela metodologia do Banco Central — patamar antes considerado insustentável para países emergentes, mesmo sem considerar as bombas fiscais. Mas economistas e integrantes do governo menos fiscalistas tentam comparar com a de países como Japão e Estados Unidos para minimizar o problema, por que é errado fazer esse tipo de comparação?
Me permita discordar e ser muito fiscalista e considerar que as comparações internacionais são uns dos elementos de análise. É notório que, em todo o mundo, a dívida pública tem trajetória ascendente depois da crise de 2008 e da pandemia da covid-19. A dívida brasileira cresceu menos e está abaixo da observada na China e nos EUA, dentre outras. O mais importante, ao meu ver nessa confrontação, é o fato de que o Brasil é das grandes nações que têm reduzida participação de estrangeiros em sua dívida — na casa de 10%, como Índia e China. Isso é radicalmente diferente das economias avançadas que dependem muito mais de financiamento externo. Não custa lembrar que, assim, nos tempos de covid-19, quando se fez um aumento extraordinário e muito forte da dívida pública, foi coberto pelos brasileiros, até porque, na crise, se prefere emprestar para quem tem o menor risco numa economia, justamente o governo.
O senhor falou que um dos problemas da LRF foi o desinteresse em aplicar limite para a dívida pública federal. Ela, pode ser menor do que a de países desenvolvidos, agora, mas projeções indicam a continuidade do crescimento do endividamento. Isso não preocupa? Como evitar uma explosão da dívida pública?
A Constituição exige dois limites para a dívida federal, a consolidada, pelo Senado, e só a mobiliária, pelo Congresso… A LRF só regulamentou e pediu uma proposta ao governo: O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso enviou, mas as dívidas nunca foram votadas. A estadual e municipal fixou uma trajetória e funcionou muito bem. Hoje, ambos níveis de governo devem muito menos do que em 2000. O mesmo caminho poderia ser adotado para União, e a Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado voltou a examinar a matéria. Quem se preocupa com aumento de dívida deveria defender vigorosamente fechar essa lacuna. Mas, eu temo que alguns adoram reclamar, mas, no fundo, só querem justificar mais Selic e também querem governo e Banco Central livres para emitir e os socorrer, na hora da crise, como ocorreu em 2008 e em 2020. Cada país adota sua política financeira, como achar melhor. Em relação ao PIB, a dívida da China dobrou em 10 anos, e supera a brasileira, na casa de 90% do PIB, e ninguém fala no assunto. Talvez, porque apenas 4% dessa dívida está na mão de estrangeiros. Mesmo na Europa, a maioria dos governos mediterrâneos têm dívida acima de 100% do PIB, e isso pouco rende espaço nos jornais. Talvez porque a maior parte dessa dívida esteja na mão do BC europeu e de bancos alemães. Confio que o Brasil encontrará um bom mix de política econômica, que controle a dívida, de forma harmônica com demais variáveis econômicas. É um erro achar que política fiscal seja independente de monetária, cambial, comercial, industrial, e vice-versa. A maior preocupação com a dívida, hoje, no Brasil, é a de um senhor banco privado, de uma companhia aérea colorida, como ainda foi de uma grande loja de departamentos. Nesses casos, eles podem quebrar e os credores perdem parte ou muito do que a eles emprestaram. Um risco como esses não existe em relação ao Tesouro Nacional.
Publicado no Correio Braziliense