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Gestão

Cortes de orçamento da Aneel expõe crise energética

Agência reguladora enfrenta sucessivos contingenciamentos, que comprometem fiscalização e resposta a apagões

30/06/2025 13h57

Foto: Divulgação

A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) anunciou na última semana a demissão de 145 funcionários terceirizados a partir de 1º de julho. A dispensa é equivalente a 15% da força de trabalho do órgão, que conta, atualmente, com 552 servidores efetivos e 487 funcionários terceirizados. A situação expõe a crise enfrentada pelas agências reguladoras no país. Mesmo sendo uma autarquia estratégica para o funcionamento do setor elétrico brasileiro, a Aneel, assim como outras agências, vem enfrentando sucessivos contingenciamentos orçamentários nos últimos anos, o que tem comprometido a capacidade de atuação e levando ao sucateamento dos órgãos de regulação.

"O corte orçamentário obrigará, de forma mais triste, o ajuste dos nossos contratos de terceirização com redução de mais de 140 postos de trabalho. Hoje, o trabalho exercido por estes colaboradores tem sido fundamental para a manutenção das nossas atividades", disse o diretor-geral da Aneel, Sandoval Feitosa.

O orçamento aprovado para 2025 era de R$ 155,64 milhões para a Aneel. No entanto, com a edição do decreto presidencial em maio, houve nova tesourada de R$ 38,62 milhões, o equivalente a 25% dos recursos da instituição, reduzindo o orçamento efetivo para R$ 117,01 milhões.

A partir de 1º de julho, o horário de funcionamento do órgão será reduzido para o período das 8h às 14h. Devido à falta de recursos, a agência informou que interromperá o atendimento humano da Ouvidoria, reduzirá drasticamente as atividades de fiscalização e deixará de oferecer uma série de serviços.

O impacto imediato das demissões tem dois aspectos centrais, segundo o especialista em direito de energia Urias Martiniano, sócio do Urias Martiniano Advogados. "Quando eu reduzo de forma drástica o orçamento da Aneel, impacto diretamente as atividades frequentes da agência, que já sofre com a sobrecarga de pedidos administrativos por falta de mão de obra. E, além disso, comprometo o avanço da regulação setorial", apontou.

Foto: Paulo Pinto - Agência Brasil

Além dos prejuízos para agentes do setor elétrico, os consumidores também devem sentir diretamente os efeitos dos cortes orçamentários. Em casos de crise, como os apagões que ocorreram em São Paulo em 2023 e 2024, os efeitos podem ser ainda mais drásticos, conforme destacou o advogado. "Já existe um corpo técnico limitado. Com o fim dos contratos de terceirizados, essa força de trabalho será ainda mais reduzida. Soma-se a isso a diminuição da carga horária, e o efeito final é um enfraquecimento claro da atuação da agência. Isso é muito negativo."

O engenheiro elétrico do Instituto Ilumina, Roberto D'Araújo, fez uma comparação com o Federal Energy Regulatory Commission (FERC), órgão correspondente à Aneel nos Estados Unidos. Segundo ele, a instituição conta com cerca de 1,4 mil funcionários. Além disso, cada estado tem agências reguladoras próprias. "Estamos desmontando as instituições reguladoras brasileiras e a Aneel não tem condições de fiscalizar um país de dimensões continentais como o Brasil com a estrutura que tem hoje", enfatizou.

A ausência de fiscalização eficiente tem sido apontada como uma das causas para os recorrentes problemas no fornecimento de energia elétrica, como os registrados em São Paulo. Houve um jogo de empurra entre as autoridades sobre a responsabilidade pelas podas de árvores, apontadas como uma das principais causas da interrupção no fornecimento.

Enquanto a prefeitura alegou que a manutenção da vegetação é tarefa das distribuidoras de energia, as empresas do setor atribuíram ao poder público a obrigação de cuidar das áreas urbanas. A falta de coordenação e fiscalização entre os órgãos envolvidos escancarou uma lacuna na gestão do sistema elétrico em meio a eventos climáticos extremos.

"Esses problemas relacionados à queda das árvores, que compromete o abastecimento de bairros inteiros e deixa milhares de pessoas sem luz, revelam falhas estruturais no sistema", apontou o engenheiro elétrico. "Situações como essas são evitadas em países com regulação mais rígida, já que a responsabilidade pela organização da rede de distribuição, incluindo a passagem de fios em meio à vegetação, também recai sobre a agência reguladora", afirmou.

A expectativa, de acordo com D'Araújo, é de que os apagões se repitam no próximo verão: "Uma agência de serviço público tem que estar suficientemente especializada na questão da energia elétrica. Nós estamos muito atrasados. No próximo verão, com certeza, haverá muitos apagões. Pode esperar".

A solução, segundo ele, passa por agências reguladoras estaduais especializadas, capazes de acompanhar de perto a situação de cada região e garantir a qualidade dos serviços públicos. "A Aneel não é capaz de cobrir as situações do setor elétrico em todos os estados do Brasil. Nos EUA, cada estado tem uma agência reguladora. Nós precisamos construir agências reguladoras estaduais que possam fiscalizar esses serviços", completou.

Encargos

Para a Frente Nacional dos Consumidores de Energia (FNCE), o resultado dos cortes no orçamento da Aneel é um enorme prejuízo à população. A entidade destacou que os consumidores já amargam aumentos na conta de luz com a recente derrubada dos "jabutis" — jargão do Legislativo para trechos que pegam carona no projeto original sem relação direta com a pauta — no PL das eólicas offshore, que prorrogam subsídios.

O Congresso prorrogou por 20 anos os subsídios concedidos para pequenas hidrelétricas e parques de energia de biomassa e de energia eólica que estão sob as regras do Programa de Incentivos às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa).

A medida deve impor um incremento de 3,5% na conta de luz e custo adicional de R$ 7,8 bilhões ao ano pelos próximos 25 anos, de acordo com as projeções da entidade. "O corte no orçamento anual da Aneel equivale a menos de 0,5% do custo anual dos jabutis aprovados com tanto empenho três semanas depois, no dia 18 de junho. Dois pesos, duas medidas", comentou a FNCE.

As empresas de energia elétrica em todo o Brasil pagam a Taxa de Fiscalização pelo Serviço de Energia Elétrica (TFSEE), correspondente a 0,4% do valor do benefício econômico anual. Somente em 2024, essa taxa totalizou arrecadação de R$ 1,25 bilhão, e a receita prevista em 2025 é de R$ 1,35 bilhão, montante 11 vezes maior que os recursos previstos para a Aneel neste ano.

Segundo o professor de engenharia elétrica Ivan Camargo, da Universidade de Brasília (UnB), a situação é grave ao diminuir a capacidade de trabalho da agência. No entanto, mais grave ainda é o controle e o contingenciamento do orçamento. "A agência foi criada por lei com um orçamento enorme, descontado dos consumidores na sua conta. Esse orçamento foi designado em sua criação justamente para que ela tivesse liberdade e independência, principalmente em relação ao governo", destacou o engenheiro.

A dependência da agência do governo, segundo Camargo, também trará uma perda de confiança para investidores, impactando contratos futuros no setor de energia elétrica. "A agência reguladora que ajusta, regula contratos entre os privados, empresas privadas, o governo e o consumidor, ela tem que ser independente, independente das três. O contingenciamento de verbas faz com que a agência fique muito dependente do governo, portanto, com a tendência de ser capturada pelo Executivo", avaliou.

Diretorias em aberto

Soma-se a esse cenário, a situação atual da diretoria colegiada da Aneel, com duas vagas sem nomeação, uma delas em aberto desde maio de 2024. Ao todo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva enviou ao Senado, no fim do ano passado, a indicação de 14 diretores para oito agências reguladoras federais.

O impasse na votação de indicações está relacionado à disputa política sobre o controle das entidades, que regulam setores importantes da economia. "Em um contexto tão crítico pelo qual passa o setor elétrico e diante da situação desafiadora da agência, Ministério de Minas e Energia (MME) e Senado travam uma disputa improdutiva por indicações políticas destinadas a esses postos, enquanto o corpo técnico do órgão vai sendo cada vez mais sobrecarregado e a população fica cada vez mais insatisfeita", destacou a FNCE.

Para a frente, esse cenário tem levado a governança do setor elétrico a dar mais um passo para trás. "Com tantos problemas, retirar recursos da fiscalização e reduzir a já insuficiente estrutura de regulação são medidas que encurtam o caminho para o colapso do sistema energético brasileiro, já à vista no horizonte."

A crise acontece, ainda, no momento em que o Congresso discute um projeto de reforma do setor elétrico. Especialistas alertam que qualquer regulação aprovada pelo Legislativo pode enfrentar dificuldades de implementação diante da situação da agência reguladora.

Fonte: Correio Braziliense