17/08/2020 15h08
Foto: Ana Lúcia Azevedo
No calor de mais de 40°C, normal no Amazonas, o Rio Limão Grande tem o frescor que o nome sugere. Mas Ester Master e o marido, Sebastião Amaral, pouco olham para o rio sobre o qual se debruça sua casa. Preferem, por dever e coração, a floresta, sob a qual se esparrama seu guaranazal. É dele que tiram a renda que levou o filho à universidade e deu à família de pequenos produtores rurais conforto de cidade no meio da selva.
O guaraná materializa o potencial econômico da biodiversidade da Amazônia, da exploração sustentável da floresta para responder aos desafios do desenvolvimento. Mas a região, segundo estudo dos irmãos cientistas Carlos e Ismael Nobre, tem pelo menos 450 espécies da flora de uso tradicional cujo potencial ainda precisa ser estudado.
O guaraná é um dos poucos casos de planta nativa que se tornou viável em escala e a única marca global da Amazônia brasileira. Outros que seguem na mesma linha são a castanha e o açaí, cita Alfredo Homma, especialista em economia agrícola e política ambiental da Embrapa Amazônia Oriental, em Belém. Há quatro décadas, ele diz, ouve falar de “biodiversidade abstrata”, uma bioeconomia sem aplicação factível na floresta.
O desafio da Amazônia é organizar o manejo sustentável de sua riqueza biológica. Homma diz que o mero extrativismo — o pensamento de “se tem na mata, por que eu vou plantar?” — leva ao atraso e à destruição. Só a domesticação de plantas nativas de interesse alimentar, farmacêutico ou cosmético em áreas já impactadas, que padroniza os cultivares, aumenta a produtividade para viabilizar a produção.
Além do extrativismo
Homma destaca que o guaraná enquanto era apenas fruto do extrativismo não avançava. Ester, de 49 anos, personifica o sucesso do fruto. Ela chegou ao Amazonas aos 5, com os pais e os irmãos. A família deixou o Paraná seduzida pela promessa de prosperidade do governo militar. Foi para Maués, no centro do Amazonas, onde ainda só se chega de avião ou barco — está a 20 horas de Manaus por rios. O pai tentou cultivar guaraná, mas, sem assistência técnica rural, viu os esforços engolidos pela selva.
A filha descobriu outro caminho na escola. Não conseguiu levar os estudos além do ensino fundamental, mas aprendeu que guaraná comercial pega de galho e não de semente. Virou “capataz de campo”, uma das raras mulheres no comando da roça. Num expediente que começa às 4h e se prolonga por 12 horas, comanda os homens da família e alguns empregados.
— É uma vida dura, mas não tenho do que reclamar. Conquistei tudo o que preciso. Minha vida hoje é muito melhor que a dos meus pais. E a dos meus filhos será melhor que a minha. Tudo com o guaraná — afirma Ester, que pagou com a produção os estudos dos filhos Rafael, de 30 anos, e Suelen, de 14, na cidade.
Rafael já terminou a universidade e se prepara para voltar, ajudar a aperfeiçoar a plantação e, um dia, substituir a mãe. A família Master está entre as que recebem algumas das 50 mil mudas de alta qualidade doadas por ano pelo Guaraná Antárctica, em Maués.
O município tem 900 produtores, um universo de 2.400 famílias. Cerca de 30 mil dos 63 mil habitantes vivem diretamente da produção do guaraná. A Bahia produz 70,3% do guaraná do país, mas o Amazonas, com 25,6%, se estabeleceu como origem do fruto, e seus produtores têm direito ao Registro de Identificação Geográfica, do INPI.
A maioria dos produtores está em comunidades às margens do Rio Maués-Açu e seus afluentes. Na São Jorge, 200 pessoas vivem do fruto orgânico que vendem para a produção do Guaraná Antarctica, e cujo excedente se preparam para exportar. Manoel Raimundo da Paz, o Seu Dico, de 75 anos, foi o primeiro dali a obter a certificação orgânica, que agrega valor na exportação.
Ramom Morato, coordenador de Produção Rural Sustentável do Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesan) e do projeto Aliança Guaraná de Maués, diz que os mercados externos e internos estão em crescimento, o que estimula a produção. Por ser altamente dependente de mão de obra, cultivos como o do guaraná geram emprego e renda, acrescenta. Diferentemente de grandes plantações mecanizadas, como soja ou milho.
Sustentabilidade
Além disso, a produção de guaraná reduz a pressão sobre a floresta, porque o guaranazeiro é perene. Em geral, a árvore produz por 20 anos, mas pode chegar a 50 anos. Isso reduz o uso do fogo e a retirada de madeira, explica Morato.
Roosevelt Hada Leal, engenheiro agrônomo na Fazenda Santa Helena, do Guaraná Antarctica, diz que a produção só não é maior porque mudanças climáticas têm atrasado a floração, reduzindo a safra. Ainda assim, uma parceria com a Embrapa já resultou numa variedade com mais cafeína.
Para Alfredo Homma, a Amazônia precisa de pesquisa para transformar a bioeconomia de conceito em prática:
— Existem ilusões amazônicas, como a de que a floresta é inesgotável.
Fonte: O Globo